No dia 7 de julho, conheci Jurema Finamour, uma jornalista e escritora brasileira que foi praticamente apagada da história contada pelos homens. Conheci Jurema por meio do espetáculo A mulher que virou bode: a história perdida de Jurema Finamour, do grupo Rakurs Teatro. O trabalho, misto de teatro, dança, documentário e música, é inspirado no livro Jurema Finamour, a jornalista silenciada, da também jornalista Christa Berger.
Trazer à luz a trajetória de Jurema Finamour é certamente a maior realização da obra do grupo Rakurs. Como é importante esse resgate histórico de mulheres e seus feitos. É como se vencêssemos o patriarcado e aqueles que tentaram destruir nossas obras, vidas, ousadias, invenções, pensamentos, existências. Jurema teve uma trajetória absolutamente caótica e não aceitou ser enquadrada seja num relacionamento, num partido político, num modo de viver. A jornalista paulista foi presa pela ditadura, conheceu e conviveu com Pablo Neruda, Leonel Brizola, Getúlio Vargas e outros grandes nomes da nossa história, foi editora de uma revista para o público feminino e autora de livros, mas, se não fosse o espetáculo de nome sugestivo, que aliás é o título do último livro de Finamour, jamais teria ouvido falar sobre ela e seus feitos. Além disso, foi emocionante entrar novamente no Teatro Renascença após as enchentes de 2024. Ver a sala restaurada e em funcionamento, devolvida aos artistas e público, é outro alento numa Porto Alegre cada vez mais hostil à ocupação dos espaços públicos pela população. Lamentei, contudo, o fato da platéia agora ter um corredor central. Infelizmente, os melhores assentos da sala, tornaram-se degraus.
Voltando ao trabalho artístico, a parte técnica foi muito bem executada. Luz, som, cenário, figurino, tudo funcionando com perfeição e contribuindo para as bonitas cenas apresentadas. Como artista, fico sempre bem impressionada quando a técnica acontece com perfeição, já que, em geral, temos menos tempo de ensaio do que gostaríamos antes de colocar as propostas em cena e menos recursos, sejam financeiros ou estruturais, do que julgamos ideal para desenvolver os trabalhos na magnitude que prospectamos. Em A Mulher que virou bode, contudo, a técnica talvez seja perfeita demais e torne o espetáculo meio asséptico, um tanto distante. Uma história de vida tão vibrante quanto a de Jurema, não chega a nos cativar quando colocada em cena a não ser em alguns momentos mais poéticos em que as muitas informações não são ditas de maneira tão declarada ou explicativa.
Indo pras minhas implicâncias úteis para os outros ou não, tenho ressalvas com o uso de microfones pelas atrizes numa sala pequena como o Renascença. Entendo a questão do canto se sobressair sobre a trilha gravada, mas nesta sala em especial não sei se eram necessários. Para o bem ou para o mal, os microfones acabam virando uma interface que intermedia o contato. Ouvimos a atriz através de algo e não mais pelo contato direto da voz com nosso aparelho auditivo. Outra nota pessoal, é que, embora gostasse muito de musicais quando mais jovem, estou num momento da vida em que o gênero parece também me incomodar um pouco. Não sei se é de fato uma constatação de uma nova maneia de ver as coisas ou se a escolha desta forma de narrativa pelo grupo realmente me incomoda para esta obra. Será que os trechos musicais ou de documentário não poderiam estar presentes no palco de outras maneiras? É bem possível que eu tivesse feito outras escolhas à frente desta proposta, mas não estou, então, na dúvida, deixo este meu incômodo para que outras pessoas possam refletir sobre se assim desejarem.
Voltando ao que interessa, as máscaras, a cabeça de bode com pele, as cenas poéticas ou non sense, o senso de humor, as mudanças de cenário, tudo contribuiu para o bom andamento do trabalho, que poderia ter resultado em algo muito confuso por agregar tantos elementos (dança, canções, textos em primeira pessoa, depoimentos em vídeo, máscaras, elementos cênicos, informações precisas, etc), mas cuja dramaturgia e direção conseguem fazer com que as peças se encaixem num todo harmônico e que não fica cansativo, embora seja uma obra com caráter bastante didático e informativo. Conforme a própria Christa no bate-papo após a apresentação da obra, algumas informações e datas eram muito importantes na sua visão e foi um pedido dela o fato de eles fazerem parte do texto da peça de alguma maneira. Aqui, volto às minhas dúvidas, será que todas estas camadas de informação eram necessárias? Acho que tem coisas que só quando vemos o trabalho em cena nos damos conta. Enfim, escolhas e processos. Quem trabalha com arte sabe que eles são vários e quase nunca estão totalmente encerrados quando estreamos uma nova proposta.
Importante ressaltar também que o elenco é todo feminino. Aliás, Luiza Waichel, além do êxito na dramaturgia de A mulher que virou bode: a história perdida de Jurema Finamour ao lado de Marcelo Bulgarelli, demonstra ser uma atriz sensível, que trabalha bem o texto e suas entonações. Vozes bonitas, atrizes bem ensaiadas e potentes, dão vida de forma exitosa à Jurema e sua história apagada. É bonito ver mulheres resgatando outras mulheres do esquecimento. A sensação é de que as frases das redes sociais como "Nenhuma e menos", "Ninguém solta a mão de ninguém", "Somos resistência", "Tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes", "Somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar" e tantas outras viram realidade. Que mais mulheres emprestem seus corpos para a redescoberta de tantas outras mulheres invisibilizadas por uma estrutura que insiste em tentar nos diminuir, oprimir e apagar. Resgatar estas mulheres é fazer justiça histórica e celebrar suas conquistas e existências.
Ficha Ténica A mulher que virou bode: a história perdida de Jurema Finamour
Direção e concepção: Marcelo Bulgarelli
Elenco: Deliane Souza, Eulália Figueiredo, Iandra Cattani, Luiza Waichel e Sophia Lovison
Canções e trilha sonora original: Antônio Villeroy
Dramaturgia: Luiza Waichel e Marcelo Bulgarelli
Textos: Christa Berger, Luiza Waichel e Jurema Finamour
Assistente de direção: Cláudia Sachs
Preparação musical e música "Trem Instrumental": Simone Rasslan
Arranjos vocais: Simone Rasslan e elenco
Assistência coreográfica: Carlota Albuquerque
Cenografia: Maíra Coelho
Assistente de Cenografia: Denise Ayres
Criação e produção de objetos: Denise Ayres e Maíra Coelho
Figurinos: Maíra Coelho e Rafael Silva
Máscaras: Fábio Cuelli
Formação de Máscaras: Cláudia Sachs e Fábio Cuelli
Iluminação: Nara Lúcia Maia
Operação de som e vídeo: Cássio Azeredo
Audiovisual: Voltaire Barbieri
Assessoria biográfica de Jurema Finamour: Christa Berger
Depoimentos: Christa Berger e Maria Helena Correa Pires
Maquiagem: Juliana Senna
Arte gráfica: Agência Gaboo
Fotos: Gilberto Perin
Tradutora e intérprete de libras: Simone Dornelles
Expografia: Karine Bulgarelli
Assessoria de imprensa: Flávia Cunha
Produção executiva: Lucimaura Rodrigues
Direção de produção: Marcelo Bulgarelli