domingo, 13 de julho de 2025

MUITO PRAZER, JUREMA

No dia 7 de julho, conheci Jurema Finamour, uma jornalista e escritora brasileira que foi praticamente apagada da história contada pelos homens. Conheci Jurema por meio do espetáculo A mulher que virou bode: a história perdida de Jurema Finamour, do grupo Rakurs Teatro. O trabalho, misto de teatro, dança, documentário e música, é inspirado no livro Jurema Finamour, a jornalista silenciada, da também jornalista Christa Berger.

Trazer à luz a trajetória de Jurema Finamour é certamente a maior realização da obra do grupo Rakurs. Como é importante esse resgate histórico de mulheres e seus feitos. É como se vencêssemos o patriarcado e aqueles que tentaram destruir nossas obras, vidas, ousadias, invenções, pensamentos, existências. Jurema teve uma trajetória absolutamente caótica e não aceitou ser enquadrada seja num relacionamento, num partido político, num modo de viver. A jornalista paulista foi presa pela ditadura, conheceu e conviveu com Pablo Neruda, Leonel Brizola, Getúlio Vargas e outros grandes nomes da nossa história, foi editora de uma revista para o público feminino e autora de livros, mas, se não fosse o espetáculo de nome sugestivo, que aliás é o título do último livro de Finamour, jamais teria ouvido falar sobre ela e seus feitos. Além disso, foi emocionante entrar novamente no Teatro Renascença após as enchentes de 2024. Ver a sala restaurada e em funcionamento, devolvida aos artistas e público, é outro alento numa Porto Alegre cada vez mais hostil à ocupação dos espaços públicos pela população. Lamentei, contudo, o fato da platéia agora ter um corredor central. Infelizmente, os melhores assentos da sala, tornaram-se degraus. 

Voltando ao trabalho artístico, a parte técnica foi muito bem executada. Luz, som, cenário, figurino, tudo funcionando com perfeição e contribuindo para as bonitas cenas apresentadas. Como artista, fico sempre bem impressionada quando a técnica acontece com perfeição, já que, em geral, temos menos tempo de ensaio do que gostaríamos antes de colocar as propostas em cena e menos recursos, sejam financeiros ou estruturais, do que julgamos ideal para desenvolver os trabalhos na magnitude que prospectamos. Em A Mulher que virou bode, contudo, a técnica talvez seja perfeita demais e torne o espetáculo meio asséptico, um tanto distante. Uma história de vida tão vibrante quanto a de Jurema, não chega a nos cativar quando colocada em cena a não ser em alguns momentos mais poéticos em que as muitas informações não são ditas de maneira tão declarada ou explicativa.

Indo pras minhas implicâncias úteis para os outros ou não, tenho ressalvas com o uso de microfones pelas atrizes numa sala pequena como o Renascença. Entendo a questão do canto se sobressair sobre a trilha gravada, mas nesta sala em especial não sei se eram necessários. Para o bem ou para o mal, os microfones acabam virando uma interface que intermedia o contato. Ouvimos a atriz através de algo e não mais pelo contato direto da voz com nosso aparelho auditivo. Outra nota pessoal, é que, embora gostasse muito de musicais quando mais jovem, estou num momento da vida em que o gênero parece também me incomodar um pouco. Não sei se é de fato uma constatação de uma nova maneia de ver as coisas ou se a escolha desta forma de narrativa pelo grupo realmente me incomoda para esta obra. Será que os trechos musicais ou de documentário não poderiam estar presentes no palco de outras maneiras? É bem possível que eu tivesse feito outras escolhas à frente desta proposta, mas não estou, então, na dúvida, deixo este meu incômodo para que outras pessoas possam refletir sobre se assim desejarem.

Voltando ao que interessa, as máscaras, a cabeça de bode com pele, as cenas poéticas ou non sense, o senso de humor, as mudanças de cenário, tudo contribuiu para o bom andamento do trabalho, que poderia ter resultado em algo muito confuso por agregar tantos elementos (dança, canções, textos em primeira pessoa, depoimentos em vídeo, máscaras, elementos cênicos, informações precisas, etc), mas cuja dramaturgia e direção conseguem fazer com que as peças se encaixem num todo harmônico e que não fica cansativo, embora seja uma obra com caráter bastante didático e informativo. Conforme a própria Christa no bate-papo após a apresentação da obra, algumas informações e datas eram muito importantes na sua visão e foi um pedido dela o fato de eles fazerem parte do texto da peça de alguma maneira. Aqui, volto às minhas dúvidas, será que todas estas camadas de informação eram necessárias? Acho que tem coisas que só quando vemos o trabalho em cena nos damos conta. Enfim, escolhas e processos. Quem trabalha com arte sabe que eles são vários e quase nunca estão totalmente encerrados quando estreamos uma nova proposta.

Importante ressaltar também que o elenco é todo feminino. Aliás, Luiza Waichel, além do êxito na dramaturgia de A mulher que virou bode: a história perdida de Jurema Finamour ao lado de Marcelo Bulgarelli, demonstra ser uma atriz sensível, que trabalha bem o texto e suas entonações. Vozes bonitas, atrizes bem ensaiadas e potentes, dão vida de forma exitosa à Jurema e sua história apagada. É bonito ver mulheres resgatando outras mulheres do esquecimento. A sensação é de que as frases das redes sociais como "Nenhuma e menos", "Ninguém solta a mão de ninguém", "Somos resistência", "Tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes", "Somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar" e tantas outras viram realidade. Que mais mulheres emprestem seus corpos para a redescoberta de tantas outras mulheres invisibilizadas por uma estrutura que insiste em tentar nos diminuir, oprimir e apagar. Resgatar estas mulheres é fazer justiça histórica e celebrar suas conquistas e existências.


Ficha Ténica A mulher que virou bode: a história perdida de Jurema Finamour

Direção e concepção: Marcelo Bulgarelli
Elenco: Deliane Souza, Eulália Figueiredo, Iandra Cattani, Luiza Waichel e Sophia Lovison
Canções e trilha sonora original: Antônio Villeroy
Dramaturgia: Luiza Waichel e Marcelo Bulgarelli
Textos: Christa Berger, Luiza Waichel e Jurema Finamour
Assistente de direção: Cláudia Sachs
Preparação musical e música "Trem Instrumental": Simone Rasslan
Arranjos vocais: Simone Rasslan e elenco
Assistência coreográfica: Carlota Albuquerque
Cenografia: Maíra Coelho
Assistente de Cenografia: Denise Ayres
Criação e produção de objetos: Denise Ayres e Maíra Coelho
Figurinos: Maíra Coelho e Rafael Silva
Máscaras: Fábio Cuelli
Formação de Máscaras: Cláudia Sachs e Fábio Cuelli
Iluminação: Nara Lúcia Maia
Operação de som e vídeo: Cássio Azeredo
Audiovisual: Voltaire Barbieri
Assessoria biográfica de Jurema Finamour: Christa Berger
Depoimentos: Christa Berger e Maria Helena Correa Pires
Maquiagem: Juliana Senna
Arte gráfica: Agência Gaboo
Fotos: Gilberto Perin
Tradutora e intérprete de libras: Simone Dornelles
Expografia: Karine Bulgarelli
Assessoria de imprensa: Flávia Cunha
Produção executiva: Lucimaura Rodrigues
Direção de produção: Marcelo Bulgarelli

domingo, 15 de junho de 2025

DIVERSIDADE NA DANÇA E NA VIDA

Nos últimos meses assisti dois espetáculos diferentes entre si, mas que, de formas também distintas, fizeram refletir sobre a acessibilidade comunicacional e sobre a diversidade de corpos na cena e na vida, ou a falta dela.

Em "Uma mulher vestida de sol", do Grupo Grial de Dança, de Pernambuco, que fez parte da programação de inauguração do Teatro Simões Lopes Neto, no Multipalco do Theatro São Pedro em Porto Alegre, a diversidade estava na cena, já que uma das intérpretes da  obra é uma pessoa com deficiência visual. Na verdade, demorei para perceber essa qualidade da intérprete. Só fui notar na terceira cena do espetáculo,  quando ela caminha dentro do círculo formado pelas peles de animais e outros elementos colocados ao redor da cena. Achara estranho que os bailarinos batiam no chão com um cajado muito perto dela numa cena anterior, mas depois percebi que eram deixas sonoras e corporais que os colegas passavam pra ela para que a artista iniciasse uma ação. Foi muito interessante ver como o grupo desenvolveu estas estratégias corporais e sonoras para incluir e dar autonomia para a "artista def" na cena. O interessante da proposta é exatamente mostrar que o fazer coletivo, a criação conjunta entre artista com e sem deficiência, ou seja, entre o grupo heterogêneo, pode produzir espetáculos plurais em que a diversidade não é o foco, mas está mostrada ali, como um espelho da realidade em que vivemos, onde convivem ou deveriam conviver pessoas com suas diferentes corporalidades.

Já em "Vocabulário Flamenco", de Juliana Prestes e Mimi Aragón, os recursos de acessibilidade comunicacional faziam parte da cena. Tradução em libras, legendas, narração e audiodescrição foram pensadas artisticamente nesta proposta ainda em construção, conforme as próprias idealizadoras. Não sou uma espectadora isenta desta mostra de processo, primeiro por se tratar de uma obra de flamenco, linguagem que participa da minha vida há  mais de 20 anos, segundo porque são meu marido, comadre e amigas em cena. Tendo em vista que tenho um lado bem determinado nesta observação e que este texto pretende focar na acessibilidade e diversidade na cena, focarei minha análise neste último ponto. A proposta colocou os recursos de acessibilidade como protagonistas da cena. É comum vermos a intérprete de libras no palco, mas em geral não ouvimos a audiodescrição e nem vemos a audiodescritora ou narrador, fato que ocorre em Vocabulário Flamenco. A proposta traz alguns verbetes do flamenco e suas explicações. Projeções, legendas, narração, tradução em libras, audiodescrição e demonstrações de música e dança trabalham unidas para que todos os públicos tenham a possibilidade de fruir das imagens e informações compartilhadas. Infelizmente, havia apenas uma pessoa com deficiência na platéia, então não obtivemos um retorno maior desse grupo de pessoas para esta nova proposta de acessibilidade integrada à cena. De toda forma, Vocabulário Flamenco aproxima os recursos de acessibilidade comunicacional do público sem deficiência e aponta novas possibilidades entre o artístico e a acessibilidade, criando novos caminhos para esta integração de corporeidades que falamos anteriormente aqui. 

Creio ser esta a principal contribuição de ambas as propostas, esta reflexão sobre as diferentes corporeidades e  como elas podem de entrecruzar e  coexistir num mundo cada vez mais fechado em bolhas de interesse e identificação. A coletividade exige um sair de si e encontrar o outro, uma busca por um outro lugar onde todos/as/es vivam a completude daquilo que entendemos como direitos e  possibilidades de vida feliz, produtiva e harmoniosa. Numa realidade onde as guerras parecem cada vez mais a solução encontrada pelos governantes de imporem suas estritas visões do todo, a busca pelo compartilhar coletivo e o acolhimento das diversidades parece ser uma necessidade da arte em sua constante busca de reflexão e de propor possibilidades e caminhos diversos e não hegemônicos.

Ficha Técnica Uma Mulher Vestida de Sol
Direção coreográfica: Maria Paula Costa Rêgo
Intérpretes criadores: Aldene Nascimento, Bruna Alves, Emerson Dias e Miguel Marinho
Trilha sonora: Grupo Grial
Direção musical/intérprete/poeta: Miguel Marinho
Iluminação: Luciana Raposo
Figurino: Biam Diphá
Cenografia: Grupo Grial
Produção: Maria Paula, Paulo André Leitão e Sofia Santana

Ficha Técnica Vocabulário Flamenco
Concepção: Juliana Prestes e Mimi Aragón
Direção geral: Juliana Prestes
Direção cênica: Juliana Kersting
Produção executiva e gestão de projeto: Uyara Camargo
Intérprete-criadora: Juliana Prestes
Roteiro: Juliana Kersting, Juliana Prestes e Mimi Aragón
Concepção de figurino: Juliana Prestes
Figurino: Flamencura e Lunares
Trilha sonora e músico: Giovani Capeletti
Direção de acessibilidade: Mimi Aragón
Produção de audiodescrição, Libras e legendas: OVNI Acessibilidade Universal
Consultoria de AD: Manoel Negraes
Narração AD: Mimi Aragón e Juliana Prestes
Locução: Denis Gosch
Tradução e interpretação em libras: Celina Xavier
Consultoria de legendagem: Kemi Oshiro
Design e operação de luz: Thais Andrade
Design de projeção: Jana Castoldi
Operação de projeção: Gabriela João
Operação de som: Haik Katchirian
Fotos: Yul Barbosa
Arte gráfica: Juliana Prestes
Assessoria de imprensa: Léo Sant´anna
Projeto Selecionado no Edital Bolsa Retomada Cultural RS da Funarte

segunda-feira, 7 de abril de 2025

ENGRENAGENS DO SAPATEADO

Com este texto sobre Engrenagem, da Cia de Dança Karin Ruschel, termino, com atraso, as reflexões sobre os espetáculos assistidos na edição 2025 do Festival Porto Verão Alegre, evento já tradicional dos verões na capital gaúcha.

Engrenagem traz à cena uma temática que permanece atual no sistema econômico capitalista no qual nossa sociedade se desenvolve: as relações de trabalho e, principalmente de exploração deste trabalho. A luta de classes, entre os operários que mantém a rotina das máquinas e os detentores dos meios de produção que acumulam bens e capital por meio da exploração da mão de obra. Não sei se as discussões sobre o fim da escola 6X1 já estavam em pauta quando o espetáculo estreou, mas a popularidade desta pauta entre a juventude e os trabalhadores do país no momento atual, tornam Engrenagem uma obra atualíssima em sua temática.

Por falar em jovens, é muito interessante ver como o sapateado de Porto Alegre se renova constantemente. Há sempre novas sapateadoras se formando e profissionalizando nas escolas e companhias da cidade. E vou falar assim, no feminino, pois a maioria dos novos talentos são jovens mulheres. Aliás, o elenco de Engrenagem é 100% feminino: das exploradas à exploradora, passando por aquelas que se deixam seduzir e acabam auxiliando na expropriação do tempo de vida de outras trabalhadoras como elas. É interessante ver esta renovação, pois, trazendo pro meu "assado": o flamenco, é algo que não temos conseguido reproduzir. O surgimento de artistas flamencas semiprofissionais ou profissionais entre 16 e 20 anos na capital gaúcha é ínfima. Com tantos anos e núcleos de dança flamenca atuando na cidade, é uma realidade que precisa ser estudada, compreendida e modificada.

De volta ao Engrenagem, embora o auditório do Instituto Goethe seja um local acolhedor, com uma plateia confortável e boa acústica, o formato da sala não contribuiu muito para a projeção que faz parte do espetáculo, isso porque, no fundo da cena, há um canto, resultado do encontro de duas paredes, e uma caixa de som que fica exatamente neste ponto, dificultando a visibilidade da projeção. Outro ponto que percebi foi que o piso do palco parecia escorregadio. Reconheci logo as marcas brancas no palco resultado do encontro das partes metálicas do solado dos sapatos com algum produto utilizado para higienização e embelezamento do assoalho. Infelizmente, essa não é uma realidade apenas do auditório do Goethe. Não há sala de espetáculos em Porto Alegre que disponha de um tablado de madeira apropriado para os sapateados (flamenco, tap, malambo, gaúchos,..).  Por último, destaco a inteligente adaptação feita pelo grupo, que não pode usar máquina de fumaça devido ao sistema de prevenção de incêndios da sala, e modificou a última cena utilizando outro elemento no lugar da fumaça. 

Além das criativas sequências coreográficas e musicais de sapateado, nas quais percebe-se o trabalho de Gabriella Castro, que mistura elementos das danças urbanas com o sapateado, destaco ainda o bonito solo de Fernanda Santos ao final do espetáculo. Uma coreografia instigante e bem executada pela bailarina. Vida longa às sapateadoras de Porto Alegre e que tenhamos tablados que facilitem e amplifiquem nossas potencialidades sem causar preocupações quanto à integridade dos palcos das salas de espetáculo da cidade. 


Ficha Técnica de Engrenagem

Concepção e coreografia: Gabriella Castro
Direção: Gabriella Castro
Elenco: Angélica Marques, Clara Verardi, Gabriella Castro, Fernanda Santos, Giovana Caierão, Isabela Borghetti, Karoline Masiero e Sofia Lilith
Sonorização: Driko Oliveira
Iluminação: Heloísa Bertoli
Produção: Karin Ruschel

segunda-feira, 17 de março de 2025

MUITA ÁGUA, IRONIA E BOAS REFLEXÕES

As enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul trouxeram muitos impactos, alguns deles com certeza ainda não revelados, estudados ou mesmo percebidos. Novas sequelas seguem aparecendo a cada novo texto, espetáculo, conversa e memória compartilhada sobre aqueles dias. Todos seguimos impactados mesmo que não saibamos disso.

Uma das melhores contribuições de Muita Água ao debate público é exatamente trazer estes efeitos à tona. Precisamos falar e refletir sobre o que aconteceu e segue acontecendo por nossas ruas, praças, casas, escolas, cidades, lares e vidas. A performance começa exatamente dando lugar ao público. Os três intérpretes/criadores estão sentados espalhados pela plateia e iniciam o trabalho perguntando para as pessoas quais são suas memórias sobre as enchentes. Pequenas rodas de conversa se formam na plateia e as pessoas dividem suas experiências. Após ouvir dois ou três relatos, os intérpretes Juliana Vicari, Fabiano Nunes e Cibele Sastre se levantam e vão para a frente do palco onde falam sobre os dias de abrigo na ESEFID. A partir daí, eles colocam galochas de plástico, capas de chuva e sobem para o palco.

No fundo da cena, vemos um monte de lixo formado por entulhos, pedaços de móveis, casas e outros objetos que um dia tiveram significado e constituíam as vidas de pessoas. Uma voz em off começa a contar como foram aqueles dias. Um texto muito bem elaborado, irônico e informativo, que nos confronta com aquelas memórias e também provoca reflexões, ao  apontar as causas e os possíveis responsáveis pela tragédia prevista ter tomado as proporções que teve. A grande quantidade de água, o barulho da chuva e dos helicópteros, a enxurrada de desinformaçóes e mentiras, o cavalo Caramelo, a ausência de planos para enfrentar o desastre pelas diferentes esferas do poder público, a enorme corrente de solidariedade, nada ficou de fora do texto que vai provocando as construções cênicas dos três intérpretes.

Um espetáculo de estética simples, sem um figurino elaborado nem grandes momentos coreográficos, mas muito impactante nas imagens que os intérpretes compõem a partir do texto inteligente, ácido, político e engraçado, cada coisa na medida certa. O mais importante de tudo, a meu ver, um espetáculo que reflete sobre algo que ainda nos impacta e que muitos de nós ainda não conseguimos refletir sobre.


Ficha técnica de Muita Água

Criação e performance: Cibele Sastre, Fabiano Nunes e Juliana Vicari
Criação e operação de luz: Carol Zimmer
Técnico de luz: Carlos Azevedo
Produção e operação de áudio: Pedro de Camillis
Pós-produção de som: Phillip Schmiedt
Assessoria de imprensa: Aline Fiabane e Porto Verão Alegre
Texto e locução: Fabiano Nunes
Ilustração e design gráfico: Gabriel Rischbieter
Animações: Lua Marinho
Criação ambientação sonora: Cibele Sastre, Fabiano Nunes e Juliana Vicari

sábado, 15 de fevereiro de 2025

SURPRESAS PROMISSORAS

No dia 16 de janeiro, tive uma grata surpresa ao assistir no teu corpo verso ser da Companhia Curvas em Dança na Sala Álvaro Moreira. A primeira surpresa foi encontrar tudo pronto para o espetáculo depois de um temporal de verão que deixou o saguão do Centro Municipal de Cultura cheio de poças d'água devido às goteiras e avarias no telhado do local. A situação não é novidade, mas parece que a Prefeitura não tem feito empenho suficiente para garantir a manutenção adequada do local. Por sorte, estava tudo seco na Álvaro.

no teu corpo verso ser mescla texto, dança e música. Aliás, o fato de ver um espetáculo com a trilha sonora sendo executada ao vivo foi outra grata surpresa. No flamenco, estamos acostumados com esta possibilidade, mas não é comum ver outras linguagens utilizando este recurso. Uma cantora e um guitarrista formam a banda do espetáculo nesta apresentação na programação do Festival Porto Verão Alegre. A interação entre eles e os bailarinos é pequena. Excetuando-se a primeira cena, em que Camila Balbueno, artista dotada de uma voz com belo timbre e técnica vocal excelente, canta rodeada pelos intérpretes (que fazem coro em alguns breves momentos), os músicos ficam sentados em duas cadeiras ao fundo do palco. Me pergunto o quanto disso é escolha estética e o quanto é necessidade técnica, pois, citando novamente a experiência com flamenco, sabemos como pode ser complicado mover músicos pelo espaço. Na grande maioria das vezes, não há microfones, caixas de retorno, canais na mesa, cabos, sistemas sem fio e outras aparelhagens sonoras que possibilitem uma boa execução da musica juntamente com o movimento. Neste caso, as impossibilidades técnicas acabam se impondo aos  desejos estéticos e de criação cênica.

Outro elemento que participa em apenas um momento do espetáculo são os quatro manequins posicionados no fundo da cena ao lado dos dois músicos. Será que aqueles dorsos pintados e grafitados com tintas coloridas não poderiam também participar do movimento da cena, ao invés de ficarem imóveis para serem manipulados em apenas um momento? Agora é a experiência com a dança teatro (ou outro nome que prefiram) que me faz imaginar quais outras possibilidades aqueles interessantes elementos cênicos teriam na construção das coreografias e cenas. Como no teu corpo verso ser parece estar em processo, algo comum em espetáculos recentes e das linguagens contemporâneas, estes manequins poderiam ajudar a compor uma cena final, que acho que ainda precisa ser encontrada. Eles também poderiam ser utilizados para quebrar um pouco o ritmo do espetáculo, que intercala cenas faladas com dançadas, quase sempre sendo uma coreografia, um texto dito por algum dos intérpretes, outra coreografia, outro texto e assim sucessivamente. De toda forma, o espetáculo consegue manter uma boa dinâmica musical e nas coreografias, ao misturar de forma inteligente, solos, duos e momentos em grupo.

A Curvas em Dança é um companhia que reúne um elenco heterogêneo e harmônico ao mesmo tempo. Corpos magros, gordos, altos, baixos, com muita ou pouca experiência em dança, se reúnem para colocar em cena coreografias bem elaboradas que demonstram um consistente trabalho de pesquisa e de exploração das possibilidades do espaço e de cada corpo em cena. O grupo é jovem e parece ter boas bases de conhecimento sobre os recursos coreográficos disponíveis. no teu corpo verso ser é uma proposta ousada, por misturar música, texto e dança, e ao mesmo tempo simples e bem realizada por toda a equipe, seja técnica ou artística, nela envolvida.


Ficha técnica no teu corpo verso ser:

Elenco: Giovana Rigo, Gianna Soccol, Karla Santos, Luan Hoffman, Paula Quirino, Rafaela Machado e Teti Ametista
Direção geral: Rafaela Machado
Direção cênica: Luan Hoffman
Textos: Júlia Córdova
Música ao vivo: Camila Balbueno e Ramon Gomes
Técnico de luz: Carlos Azevedo
Técnico de som: Manu Goulart
Cenografia: Alex Zardin
Filmagem e edição: Main Quest
Produção: Seis por Oito
Realização: Companhia Curvas em Dança

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

ENQUANTO DANÇAMOS EM PORTO ALEGRE

Este é o primeiro texto de uma série destinada aos espetáculos assistidos no Festival Porto Verão Alegre em janeiro de 2025 em Porto Alegre: Enquanto Esperamos, da Cia H Dança; no teu corpo verso ser, da Curvas em Dança; Muita Água, de Cibele Sastre, Fabiano Nunes e Juliana Vicari e Engrenagem, da Cia de Dança Karin Ruschel. Farei um texto sobre cada um, mas talvez aconteçam comparações ou relações entre eles pela proximidade em que os assisti, num intervalo de duas semanas.

A primeira destas relações é sobre o público presente nas propostas coreográficas, em grande parte formado por amigos e familiares dos artistas em cena e pela classe artística. O assim chamado "público em geral", formado por pessoas que não tem relação direta com a dança e outras artes ou com os artistas e técnicos envolvidos nos espetáculos, é muito pequeno, em algumas propostas inexistente. Mesmo que a dança seja uma das atividades artísticas mais praticadas no país, ela segue tendo pouco público e a formação de plateia parece continuar necessária. As escolas conseguem levar público para seus próprios espetáculos, mas como fazer com que as pessoas se interessem pelos trabalhos das companhias independentes, artistas individuais e outros não vinculados a espaços de formação?

Tendo em vista este entre muitos outros desafios presentes no cenário da dança em Porto Alegre, a Cia H não só apresentou Enquanto Esperamos neste PVA, mas também outros dois espetáculos. O programa da companhia dirigida por Ivan Motta era composto por EXTimidades, realizado no dia 14 de janeiro; e as estreias de Enquanto Esperamos, no dia 15, e Memórias Perdidas II, no dia 16. Todos foram apresentados no Teatro Bruno Kiefer, no 6 andar da Casa de Cultura Mario Quintana. Uma sequência de espetáculos que, além de revelar que a Cia H é uma das mais atuantes nas duas últimas décadas na capital gaúcha, mostra que as equipes técnicas e artísticas que compõem este núcleo criativo tem conseguido se empenhar em colocar suas propostas em cena. E isto não é tarefa fácil, já que os bailarinos e técnicos da companhia não trabalham sob regime de exclusividade, uma condição rara na Porto Alegre de 2025 (me pergunto se isso existe na cidade), mas também porque as companhias independentes ou aquelas que não são vinculadas a centros de formação em dança não costumam ter sedes próprias nem fontes fixas de financiamento que permitam a continuidade ideal dos trabalhos, o que acredito ser o caso da Cia H Dança. Esta realidade dificulta os trabalhos de aprimoramento técnico dos bailarinos, ensaios, manutenção de figurinos e cenários, entre outros desafios.

Outro fator digno de nota nestas linhas é que Ivan Motta faz parte do mesmo grupo de Carlota Albuquerque, como dito neste texto sobre o novo trabalho da Cia Municipal de Porto Alegre, ou seja, é um coreógrafo que imprime seu estilo às propostas que leva a cena. Coreografias tecnicamente difíceis e bem elaboradas, com bonitos duos; bailarinos com grande capacidade técnica e expressiva, flexíveis, fortes, ágeis, com musicalidade; figurinos que costumam dançar junto com os muitos movimentos das coreografias, feitos em camadas, com tecidos de diferentes caimentos e texturas; desenhos de luz que intensificam as movimentações cênicas; a manutenção de um núcleo técnico e artístico capaz de realizar as diferentes propostas; capacidade de ressaltar as potencialidades ou características mais desenvolvidas em cada bailarino; colagens de músicas diversas compondo a trilha. Tudo isso costuma estar presentes nas propostas de Ivan Motta e cria uma identidade estética reconhecível.

Enquanto Esperamos tem tudo isso e ainda a mescla de experiências, ao colocar em cena quatro bailarinos da nova geração da dança de Porto Alegre ao lado de Edison Garcia, um intérprete com longa carreira na cena gaúcha. Neste trabalho, Edison demonstra bom domínio de texto, ao apresentar os outros quatro personagens e fazer as transições entre as cenas que compõem o espetáculo. Apesar de Garcia ter realizado um bom trabalho técnico com o texto, suas interações mais comoventes foram aquelas em que ele, com movimentos e elementos cênicos transicionou as emoções de cada momento sem falar. Enquanto Esperamos trouxe pra cena angústia, mas não vi, compreendi ou percebi as relações com as enchentes ocorridas em 2024 no RS. Como eram dois casais de bailarinos, as cenas e coreografias por vezes pareciam trazer à luz ou versar sobre os relacionamentos daquelas pessoas e não sobre o caos climático e a espera por resgate como escrito na sinopse de Enquanto Esperamos. Por certo vivenciar um desastre ecológico de grandes proporções não impede que outras questões apareçam, como vimos nos numerosos e lamentáveis casos de abuso revelados nos abrigos para os desalojados pelas águas em Porto Alegre e outras cidades do estado, mas este não parecia ser o enfoque central da obra da Cia H.

Na verdade, saí do teatro pensando no que havia ficado em mim depois de assistir Enquanto Esperamos. Para além das belas coreografias perfeitamente executadas, mais uma vez, relembrando a experiência com a Cia Municipal, o trabalho trouxe mais reflexões sobre o fazer artístico e o cenário da dança em Porto Alegre do que sobre a proposta cênica apresentada. Pode ser que meu olhar esteja viciado por ser também uma artista da dança nesta cidade, que atua, produz, dá aulas, é PJ e PF ao mesmo tempo e todas essas coisas, mas e se não for esta a questão?


Ficha Técnica de Enquanto Esperamos:

Direção: Ivan Motta
Elenco: Edison Garcia, Caleo Alencar, Tami Melegari, Bruno Manganelli, Andressa Pereira
Produção: Luka Ibarra
Iluminação: Maurício Rosa
Sonorização: Andre Vinowsky

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

NAS ÁGUAS DA CIA MUNICIPAL

Ainda no exercício de voltar a escrever sobre dança, chegou a vez de colocar aqui minhas sensações depois de assistir Coração Encharcado e ainda assim... da Cia Municipal de Dança de Porto Alegre. A obra estreou no dia 25 de novembro de 2024 no estacionamento do Centro Municipal de Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues e fez parte da programação da 31 edição do Festival Internacional de Artes Cênicas Porto Alegre Em Cena.

Cheguei uns quinze minutos antes das 20h, horário marcado para a apresentação, achando que seria melhor chegar mais perto do horário de início pois, como a obra foi idealizada e apresentada no estacionamento do teatro, acreditei que o público ficaria em pé. Para minha surpresa, havia uma arquibancada formando a plateia que, no entanto, estava já lotada quando cheguei. Consegui sentar no cordão que separa o gramado do espaço geralmente ocupado pelos carros. O público foi-se espalhando pelo gramado e junto à grade que delimita o estacionamento e logo a produção começou a limitar o local onde as pessoas estariam, já que, embora Coração Encharcado aconteça num estacionamento, havia um espaço cênico pré-determinado, ou seja, haviam luzes montadas, objetos cênicos posicionados e marcas cênicas que precisavam ser respeitadas. Creio que, para uma melhor fruição da obra e afim de evitar atrasos, seria melhor para o público e para os artistas e técnicos, que a quantidade de assistentes fosse limitada. Uma entrega de senhas teria facilmente evitado alguns inconvenientes. Estou fazendo todo esse preâmbulo porque o local e como estamos acomodados ou não para assistir a algo acaba influenciando na forma como experienciamos as diferentes situações. Depois de uns 15min, a grama que roçava minha perna, a dor por sentar no chão duro e a falta de local para esticar as pernas já nublavam a minha experiência ali.

A palavra incômodo define grande parte da sensação que vivi naquela noite. Obviamente que ressalto a qualidade técnica dos bailarinos, da produção, da equipe técnica, a Cia Municipal tem bons profissionais atuando em todas as áreas necessárias para a realização de um espetáculo. É impossível negar que os bailarinos são técnica e expressivamente completos, que a iluminação intensificou e sublinhou intenções e momentos e que Carlota Albuquerque é uma das grandes coreógrafas contemporâneas de Porto Alegre. Aliás, uma das características de Coração Encharcado é que ele tem o "selo" Carlota Albuquerque, ou seja, quando a gente começa a assistir a obra, identificamos imagens, formas de composição, uso de elementos cênicos, estética dos figurinos e formas de pensar a cena próprios dessa profissional que, neste trabalho, atuou ao lado de Airton Tomazzoni. Ao ver este trabalho da Cia Municipal de Porto Alegre, lembrei de outros do Terpsi e do Canoas Coletivo de Dança também assinados pela diretora e coreógrafa. Quando falamos de profissionais que atuam há décadas num local e com diferentes grupos de pessoas, é interessante notar as características e escolhas artísticas que fazem aquele trabalho reconhecível como algo dirigido ou idealizado por esta determinada pessoa.

Voltando à cena do dia 25, meu incômodo, para além de estar mau acomodada, começou quando vi aquele monte de água potável sendo desperdiçada. Água derramada de sacos e tonéis, jogada de baldes do alto do telhado do Centro Municipal de Cultura, jorrando de um lava jato apontado para cima, enfim, ver toda aquela água escorrendo me impactou de maneira negativa. Claro que as imagens eram bonitas. Também não acho que seja viável falar sobre enchentes, chuvas e inundações, sem trazer a água pra cena, mas como uma pessoa que ficou muitos dias sem água nas torneiras, que teve que quase disputar garrafas de água mineral nos supermercados, que teve esse recurso racionado por praticamente 30 dias, fiquei incomodada em ver toda aquela água escorrendo pelo concreto do estacionamento. Nem eu conhecia esse trauma instalado em mim. E é essa exatamente uma das razões de existência das artes, não? Nos trazer questionamentos e percepções sobre nós, sobre os outros, sobre um determinado tema ou sentimento. 

Embora eu tenha refletido sobre a água e o espetáculo tivesse cenas impactantes e poéticas, como o solo da bailarina com as fotografias nos cabelos e quando barquinhos coloridos de papel navegam num curso de água, respectivamente, a sensação geral que tive com Coração Encharcado e ainda assim foi de deja vu. Era um espetáculo com os sempre bem preparados bailarinos da Cia Municipal e dirigido pela estética da Carlota Albuquerque. A falta de acomodação do público, obviamente subestimado pela organização do evento e toda aquela água não me deixaram ter uma percepção mais objetiva da obra. Fui tomada pela dor no quadril, pelas memórias do racionamento e das perdas que tivemos para as águas, pelos pensamentos de quem também cria para espaços fora de teatros e fica questionando o quanto conseguimos controlar ou não todas as variáveis do momento e o quanto precisaríamos deixar espaço para a improvisação e adaptação quando não estamos numa caixa cênica. Coração encharcado  ocorre num estacionamento, mas a obra delimitou um espaço para acontecer, criou-se um "palco italiano", uma vista frontal, apesar dos momentos em que uma bailarina apareceu no telhado ou um carro surgiu buzinando na entrada do estacionamento trazendo o famoso Jacaré do Menino Deus, quase um popstar da enchente em Porto Alegre.

Enfim, vi e ouvi muita gente que sentiu diferente ao assistir esse trabalho da Cia Municipal de Porto Alegre. Pessoas que ficaram impactadas, emocionadas, mas eu de fato não consegui estabelecer uma conexão desse tipo com a obra. Fiquei pensando sobre muitas outras coisas que acredito não serem as propostas artísticas dos criadores deste trabalho. Espero rever Coração Encharcado e ainda assim... em outras condições para estabelecer outras conexões com a obra.


Ficha técnica de Coração encharcado e ainda assim...:

Direção: Airton Tomazzoni e Carlota Albuquerque
Assistência de direção: Neca Machado
Intérpretes/criadores: Andressa Pereira, Caleo Alencar, Driko Oliveira, Iago Poerch, Isadora Franco, Leonardo Maia, Leonardo Silva, Marina Sachet, Paola Baldissera, Paula Finn, Pedro Coelho
Cenografia: Rodrigo Shalako
Trilha sonora: Driko Oliveira
Figurinos: Gustavo Dienstmann
Iluminação: Guto Greca
Fotos: Tom Peres
Produção: Carol Martins, Carla Souza e Ilza do Canto