Num dia desses numa mesa de bar com meus colegas artistas,
entrei numa discussão enorme sobre a necessidade ou não de “entender” as
manifestações artísticas. Como não consegui ser absolutamente compreendida na
ocasião, resolvi escrever sobre o assunto, pois acredito que o tema seja
interessante.
Para gostar ou não de uma obra artística, creio não ser
realmente necessário compreendê-la racionalmente. Muito da comunicação da arte
com o público se dá no campo do sentir, da emoção, das sensações e não vejo
nada de errado nisto. Aliás, acho interessante deixar a razão de lado de vez em
quando e experimentar outras formas de fruição e “obtenção” de conhecimento. É
limitador conhecermos o mundo somente através das lentes da racionalidade.
Acredito que as sensações e emoções também ensinam muito e este conhecimento
obtido por meio do corpo físico é tão importante quanto o que construímos
mediante o aprendizado por meio da mente (que também faz parte do corpo), mas defendo que até para nos emocionarmos com uma obra é preciso que consigamos estabelecer uma relação com ela.
O que defendo é que, a partir do momento que entramos em
contato com os “códigos” das diferentes manifestações artísticas, conseguimos
extrapolar o “gosto ou não gosto” e ampliar a relação com uma determinada obra
de arte. Vou citar o exemplo do flamenco. Quando comecei a dançar flamenco, eu
achava que o flamenco era apenas uma dança espanhola, não tinha noção da real
ligação que a dança flamenca tem com a música e nem da cultura toda que esta
manifestação envolve. Por esta razão, eu ouvia os cantes jondos do flamenco
(aqueles cantes tristes que lembram lamentos) e achava chato. Eu não
compreendia o que estava ouvindo e, por isso, não gostava, não escutava, não me
comunicava com aquilo.
À medida que fui conhecendo a cultura flamenca, que entrei em contato com a origem desta manifestação, que compreendi o
idioma (espanhol), que compreendi os ritmos, as melodias, que conheci a
inspiração de cada palo flamenco (podemos chamar de ritmos), enfim, à medida
que decifrei o código consegui apreciar este tipo de cante que, aliás, dizem ser a origem de toda a arte flamenca. Eu transcendi a barreira do gosto ou não gosto, porque o que eu ouvia
passou a ter um novo sentido para mim. Hoje em dia, este tipo de canto cheio de
lamentos e dor é o que mais me “atrai” no universo flamenco. Digo sempre que
não tem nada mais bonito do que uma soleá flamenca. É bonito, me toca, me emociona, mas tudo só
foi possível depois que eu compreendi o flamenco, seu código, sua estrutura,
seu tema, sua forma de pensar, de compor, de dançar, de viver.
É este o meu problema com o jazz, por exemplo. Não vim da
música e sei muito pouco sobre este assunto. Já me explicaram que num show de
jazz, os músicos vão improvisando um a um sobre um tema comum a todos e
acredito que isto deve ser muito complexo e que exige muito conhecimento e
técnica para ser bem executado, mas este é o tipo de expressão artística com a
qual não consigo dialogar. Meu diálogo com o jazz termina no “nossa, que legal
isto” e não gera uma reflexão maior ou uma mudança significativa na minha forma
de ver aquilo tudo. Defendo que o que falta para um diálogo maior entre eu e o
jazz (falando somente da parte musical do mesmo) é entrar em contato real com o
código por trás daquilo que vejo e escuto. Se eu entendesse de harmonia,
escalas, tons e etc, teria mais ferramentas para elaborar a quantidade enorme
de coisas que acontecem durante um show de jazz e talvez conseguisse elaborar
novas reflexões a partir do que ouvi. Sinto-me muito ignorante quando ouço dos
músicos comentando sobre um show de jazz ao qual também assisti. É intrigante
ver como aquilo consegue ser tão impactante para eles e tão distante para mim.
É como na leitura, é preciso ser alfabetizado para poder ler
e interpretar. Sem conhecer o código, neste caso, as letras e as palavras, não
há uma real comunicação ou uma troca de informações mais profunda. O que
acontece fica restrito ao pequeno campo do gosto pessoal ou do “ai, que bonito
isso” (as pessoas podem achar bonitas as formas que as palavras criam no papel). Campo este que deve ser o início da relação entre as manifestações
artísticas e o público, mas que precisa ser ampliado para que a arte atinja
outros de seus objetivos que não o simples entretenimento. A arte propõe novas
formas de pensar, de agir, de ver o mundo, porém nem sempre o público consegue
perceber tudo isto, já que não tem contato com os códigos que permitem esta
leitura mais ampla da obra de arte com a qual está se relacionando ou tentando
se relacionar.
Não sei se fui clara, mas defendo uma democratização dos “códigos”
e estruturas que são usados para que uma obra passe do campo da inspiração para
o campo do real. Conhecendo o "alfabeto artístico", o público pode ter uma real
fruição da arte. Acho que a arte também possui um papel didático que muitas
vezes é negligenciado e que acaba afastando as pessoas de manifestações artísticas
que elas não conhecem. Não defendo que os artistas tenham que ficar explicando
suas obras, mas que precisamos sim propor e disponibilizar ferramentas para
ampliar o diálogo do público com a arte sempre que tivermos oportunidade para
isto. Ou ainda, podemos criar estas
oportunidades cada um da maneira que julgar mais interessante para cada público
ou para cada obra. Enfim, sigo pensando sobre tudo isso e desejando que mais e
mais pessoas consigam construir uma comunicação mais consistente com a arte e
os artistas. Afinal de contas, a arte perde sua função se não houver público
para ela.