segunda-feira, 8 de agosto de 2022

VAZIO IMENSO

Faz algum tempo que quero escrever sobre a vida sem a minha mãe. A vida neste vazio enorme que é a ausência dessa figura que foi tão importante na minha formação enquanto ser neste mundo. Faz um ano que comecei a escrever este texto, graças a um processo criativo no qual estava inserida. A criação está em pausa e o texto finalmente chegou numa versão publicável.

Minha mãe se chamava Celma Silveira Silva, tinha 70 anos, e faleceu ao amanhecer do dia 11 de janeiro de 2019. A vida, no entanto, já havia mudado antes desta data. A vida mudou quando um cansaço persistente e um pouco de falta de ar, transformaram-se em uma primeira internação hospitalar e um diagnóstico: pneumonite instersticial aguda grave. Lembro de colocar no google esse nome feio e começar a chorar ao ler que a doença não tinha cura e que a sobrevida era de 2 a 5 anos após o diagnóstico e condicionada ao uso de pesados corticoides. Corticoides que minha mãe não podia usar por problemas pré existentes no fígado.

Aqui, abro um parênteses para o que vivemos durante as fases mais agudas desta pandemia de covid, vivências que trouxeram todos aqueles dias de hospital de volta. As vistas na UTI, as conversas com o médico, a progressão da doença. A pandemia potencializou o meu luto. Tudo porque a covid causa nos pulmões dos infectados esta mesma inflamação crônica que vitimou minha mãe. Os procedimentos médicos descritos no tratamento de um infectado pelo coronavírus são muito parecidos com aqueles que eu vi minha mãe passar. Ela também morreu entubada numa UTI, assim como o meu irmão. Ele se chamava Carlos Remi Rocha Silva, tinha 66 anos, e faleceu às 22h05 do dia 05 de abril de 2021 em decorrência da infecção por covid-19. A diferença fundamental é que nós podíamos estar com minha mãe nos momentos de visita e também pudemos nos despedir dela com o conforto dos amigos e familiares. Meu irmão, porque ficou internado 40 dias e já não tinha o vírus quando faleceu, também teve uma despedida e enterro mais ou menos normais. Digo mais ou menos, porque ele morava na Bahia e, por causa do descontrole pandêmico vivido no Brasil à época da sua morte, nós não pudemos prestar as últimas homenagens lá de pertinho. A família não pode se reunir, se abraçar, se fortalecer presencialmente. “Ir” ao velório do meu irmão e padrinho de batismo por video-chamada no whatsapp foi uma das coisas mais tétricas e arrasadoras pelas quais passei nos últimos anos. A outra foi carregar a urna com as cinzas da minha mãe pra lá e pra cá, colocar no armário, tirar do armário, colocar sobre a cama, levar para o local do descanso final, sentir as cinzas dela embaixo das minhas unhas durante a dispersão das mesmas. Enfim, sensações que ninguém imagina sentir.

Fechando este parêntese que também fala de outra ausência, volto a descrever meus últimos meses com minha progenitora. Eu acompanhei minha mãe por todas as alas do hospital. Ela passou por quatro internações desde o diagnóstico até a partida. (4 internações, 40 dias, qual será a mágica por trás do número quatro?) A cada internação, ela saía do hospital mais debilitada, menos parecida com a mulher ativa, atuante, sempre preocupada com os outros e resolvendo todos os problemas de todos, tendo sido chamada para isso ou não. Lembro de estar sentada ao lado do caixão dela no velório e pensar exatamente nas muitas horas que compartilhamos no Hospital Ernesto Dornelles. O hospital que viu eu e minhas irmãs nascerem, viu minha mãe partir. Eu fiquei com ela até o carro da funerária levar o corpo para ser preparado. Então, acompanhei ela do quarto, passando pela UTI e chegando ao necrotério.

Durante os meses de entradas e saídas do hospital, eu estava em meio a outro processo criativo. Estávamos construindo o espetáculo Às vezes eu Kahlo, que fala sobre a artista plástica Frida Kahlo. Minha mãe dizia para as enfermeiras que eu estava fazendo laboratório para o espetáculo ao passar tempo com ela no hospital. De uma certa forma, ver o declínio físico da minha mãe foi sim laboratório, mas não me preparou para a ausência dela. Minha mãe cumpriu exemplarmente a função do cuidado que é historicamente delegada às mulheres. Com sua partida, a casa não estava mais organizada, o pai não tinha mais quem o cuidasse, ninguém mais estava no controle das situações, ninguém mais voltava do centro com sacolas de compra e sempre, sempre com algum presente para mim e minhas irmãs. Digo com sua partida, pois de dentro do hospital ela ainda comandou a reforma do banheiro do quarto dela, ainda tentou organizar as contas, os cuidados com o pai, a vida familiar. Ela não chegou a ver o banheiro reformado. Eu também herdei roupas dela que vieram ainda com a etiqueta. Peças que ela nem chegou a usar...

Enfim, ela se foi e no lugar ficou um imenso vazio. Aquelas e aqueles que tiveram a oportunidade de terem mães que cuidam, protegem e amam em suas vidas sabem que a saudade que fica quando elas se vão é enorme. É um buraco que não tem como ser preenchido. Fica um vácuo. Parece que, de uma hora para outra, e, definitivamente, viramos adultos. O sentimento é de estar sozinhos e sozinhas nesta jornada mesmo que ainda tenhamos familiares e amores que estejam conosco. Dizem que amor de mãe é único e acredito que seja mesmo e, exatamente por esta razão, é tão difícil seguir sem a presença delas, sem as mensagens no whats, sem as cobranças por resultados, sem o olhar na platéia, sem os presentes, sem as ligações pedindo visitas e exigindo a presença. A figura materna é algo tao fundamental na nossa cultura que deveríamos nos preparar melhor para viver sem este ser que encarna o ideal da maternidade. Aliás, essa verdadeira obrigação imposta às mulheres de amar, cuidar, prover e proteger também não ajuda os filhos e filhas a suportarem, entenderem a seguirem suas caminhadas com essa ausência.

Eu não quero ser mãe. Entre muitas outras coisas, não quero a responsabilidade do cuidado constante e de ser este ente cuja presença é tão onipresente e necessária que a ausência passa a ser sentida para todo o sempre. Não quero esse “poder”. Alguns vão dizer que é egoísmo, outros vão dizer que “daqui a pouco vou ter vontade de”, mas o fato é que não desejo desempenhar o papel materno. Conviver com outras mães e, especialmente com a minha, fez-me entender que a maternidade não pode ser compulsória. Ela precisa ser desejada e muito. Pra além disso, para o maternar ser uma experiência rica e gratificante para a mãe e as filhas e filhos, é preciso ter uma rede de apoio à mãe que não costuma existir. Ao contrário, vemos mulheres absolutamente sobrecarregadas, cansadas, exauridas e que, ainda por cima, são cobradas diariamente para desempenharem funções a elas impostas. Funções que devem ser feitas de determinada forma e atingirem resultados pre-estabelecidos.

Por fim, embora a discussão sobre o papel da mulher na sociedade seja absolutamente relevante e atual, este texto já está longo e, se eu não fechar mais este parêntese, ele não chegará nunca a outras pessoas que possam se interessar pelo pouco descrito aqui. E assim termino, meio abruptamente e direto aqui deste lugar de saudade e vazio. Vazio porque uma presença que sempre esteve aqui, durante toda a minha vida, já não pode ser sentida. A vida não é mais a mesma, mas ela segue sempre em frente. Sigamos também!