Depois da tragédia que aconteceu em Santa Maria, vi todo
tipo de comentário nas redes sociais da internet, mas um dos que mais me chocou
foi ver uma “artista” dizer que se a pessoa não tinha nenhum parente ou conhecido entre os mortos e feridos na Boate Kiss, esta pessoa não pode ficar triste ou
até mesmo chorar por causa do fato.
Seria correto chamar de artista uma pessoa incapaz de se
sensibilizar com a dor de outras pessoas como ela? O fazer artístico não é
impregnado de sentimentos, razões, emoções, pensamentos e inspirações humanas?
A arte não versa sobre o ser humano e sobre o mundo que nos cerca a partir da
visão de outro ser humano sobre tudo isto? E como chamar de artista uma pessoa
que é incapaz de sentir tristeza diante das imagens de mães e pais chorando
sobre os corpos de seus filhos? É
possível fazer arte sem ser alguém sensível aos outros e ao meio que nos cerca?
É possível ser artista sem ser humano, no sentido de ser um ser racional que é
capaz de compaixão para com os outros?
O objeto da arte é esta humanidade ou estaria eu enganada?
Os artistas falam, cantam, pintam, dançam, compõem, enfim, inspiram-se nas
coisas que nos tornam humanos, ou seja, os nossos sentimentos, emoções, nas
relações políticas e sociais dos seres, naquilo que podem perceber do mundo que
os cerca e por aí vai. Se a pessoa não é capaz de sensibilizar-se com tudo
aquilo que a rodeia como pode querer se expressar artisticamente sobre estas
coisas? O artista é um ser que se contamina dos outros ou que busca em si mesmo
elementos que possam contaminar aos outros. Alguma pessoa que se diz artista
profissional faz arte para si mesmo? Os artistas podem exteriorizar seu interior,
mas também se inspirar em outros seres ou na natureza ou discutir problemas e
conflitos importantes da sociedade em que vivemos. O artista quer comunicar,
propor reflexões, encantar, emocionar, transformar o público, criar novas
possibilidades de entendimento. É impossível fazer qualquer uma destas coisas
sem conhecer as pessoas para as quais estamos “falando”. E o conhecer passa
também pelo ato de se colocar no lugar do outro e perceber a vida pelo olhar do
outro. Não consigo conceber um artista alienado dos outros e do mundo que nos
cerca vivendo nesta nossa “sociedade da informação”, das redes sociais, da
internet, da globalização. Somos seres sociais e a nossa arte precisa refletir
isto.
Conversando sobre o assunto, uma amiga me fez pensar ainda noutro
aspecto, esta pessoa anda pelas noites, vai a locais como a boate Kiss. Onde
está o papel social do artista? Eu acredito que os artistas tem um papel social
que pode ser manifestado enquanto denúncia, que pode ser feita através dos
meios legais ou do próprio fazer artístico. Este tipo de pessoa vai conseguir
subir tranquilamente num palco sem pensar antes se o local que ela está é
seguro para ela e para os demais? Será que esta pessoa vai soltar fogos de
artifício no seu próximo show? Ou vai continuar entrando em locais superlotados
sem ao menos procurar as saídas de emergência ou se certificar que elas
existem? E se não existem? Vai continuar frequentando o lugar e trabalhando
neste lugar sem ao menos falar com os responsáveis sobre os problemas que o
local apresenta? Isto é, além de tudo, burrice! Afinal de contas, não só a
segurança dos frequentadores dos lugares está em risco, mas de todos aqueles
profissionais artistas ou não que estão atuando nestes locais. Os artistas
também precisam exigir condições seguras de trabalho, além do pagamento de
cachês dignos.
E é por isto que escrevi “artista” entre aspas lá no início
do texto. Acredito que esta pessoa que é incapaz de sensibilizar-se com a dor
alheia, mas uma dor que todos nós seres humanos um dia sentiremos, pois a morte
faz parte da vida e todos nós perderemos entes queridos ao longo dos anos em
que vivermos. Esta pessoa incapaz de sentir algo tão humano não pode ser
considerada um artista. É indigna de intitular-se como tal por ser incapaz de
sentir o outro e de pensar seu papel enquanto ser social. Diria mais, será que
esta pessoa pode ser considerada um ser humano? Um ser realmente humano?