terça-feira, 21 de janeiro de 2025

NAS ÁGUAS DA CIA MUNICIPAL

Ainda no exercício de voltar a escrever sobre dança, chegou a vez de colocar aqui minhas sensações depois de assistir Coração Encharcado e ainda assim... da Cia Municipal de Dança de Porto Alegre. A obra estreou no dia 25 de novembro de 2024 no estacionamento do Centro Municipal de Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues e fez parte da programação da 31 edição do Festival Internacional de Artes Cênicas Porto Alegre Em Cena.

Cheguei uns quinze minutos antes das 20h, horário marcado para a apresentação, achando que seria melhor chegar mais perto do horário de início pois, como a obra foi idealizada e apresentada no estacionamento do teatro, acreditei que o público ficaria em pé. Para minha surpresa, havia uma arquibancada formando a plateia que, no entanto, estava já lotada quando cheguei. Consegui sentar no cordão que separa o gramado do espaço geralmente ocupado pelos carros. O público foi-se espalhando pelo gramado e junto à grade que delimita o estacionamento e logo a produção começou a limitar o local onde as pessoas estariam, já que, embora Coração Encharcado aconteça num estacionamento, havia um espaço cênico pré-determinado, ou seja, haviam luzes montadas, objetos cênicos posicionados e marcas cênicas que precisavam ser respeitadas. Creio que, para uma melhor fruição da obra e afim de evitar atrasos, seria melhor para o público e para os artistas e técnicos, que a quantidade de assistentes fosse limitada. Uma entrega de senhas teria facilmente evitado alguns inconvenientes. Estou fazendo todo esse preâmbulo porque o local e como estamos acomodados ou não para assistir a algo acaba influenciando na forma como experienciamos as diferentes situações. Depois de uns 15min, a grama que roçava minha perna, a dor por sentar no chão duro e a falta de local para esticar as pernas já nublavam a minha experiência ali.

A palavra incômodo define grande parte da sensação que vivi naquela noite. Obviamente que ressalto a qualidade técnica dos bailarinos, da produção, da equipe técnica, a Cia Municipal tem bons profissionais atuando em todas as áreas necessárias para a realização de um espetáculo. É impossível negar que os bailarinos são técnica e expressivamente completos, que a iluminação intensificou e sublinhou intenções e momentos e que Carlota Albuquerque é uma das grandes coreógrafas contemporâneas de Porto Alegre. Aliás, uma das características de Coração Encharcado é que ele tem o "selo" Carlota Albuquerque, ou seja, quando a gente começa a assistir a obra, identificamos imagens, formas de composição, uso de elementos cênicos, estética dos figurinos e formas de pensar a cena próprios dessa profissional que, neste trabalho, atuou ao lado de Airton Tomazzoni. Ao ver este trabalho da Cia Municipal de Porto Alegre, lembrei de outros do Terpsi e do Canoas Coletivo de Dança também assinados pela diretora e coreógrafa. Quando falamos de profissionais que atuam há décadas num local e com diferentes grupos de pessoas, é interessante notar as características e escolhas artísticas que fazem aquele trabalho reconhecível como algo dirigido ou idealizado por esta determinada pessoa.

Voltando à cena do dia 25, meu incômodo, para além de estar mau acomodada, começou quando vi aquele monte de água potável sendo desperdiçada. Água derramada de sacos e tonéis, jogada de baldes do alto do telhado do Centro Municipal de Cultura, jorrando de um lava jato apontado para cima, enfim, ver toda aquela água escorrendo me impactou de maneira negativa. Claro que as imagens eram bonitas. Também não acho que seja viável falar sobre enchentes, chuvas e inundações, sem trazer a água pra cena, mas como uma pessoa que ficou muitos dias sem água nas torneiras, que teve que quase disputar garrafas de água mineral nos supermercados, que teve esse recurso racionado por praticamente 30 dias, fiquei incomodada em ver toda aquela água escorrendo pelo concreto do estacionamento. Nem eu conhecia esse trauma instalado em mim. E é essa exatamente uma das razões de existência das artes, não? Nos trazer questionamentos e percepções sobre nós, sobre os outros, sobre um determinado tema ou sentimento. 

Embora eu tenha refletido sobre a água e o espetáculo tivesse cenas impactantes e poéticas, como o solo da bailarina com as fotografias nos cabelos e quando barquinhos coloridos de papel navegam num curso de água, respectivamente, a sensação geral que tive com Coração Encharcado e ainda assim foi de deja vu. Era um espetáculo com os sempre bem preparados bailarinos da Cia Municipal e dirigido pela estética da Carlota Albuquerque. A falta de acomodação do público, obviamente subestimado pela organização do evento e toda aquela água não me deixaram ter uma percepção mais objetiva da obra. Fui tomada pela dor no quadril, pelas memórias do racionamento e das perdas que tivemos para as águas, pelos pensamentos de quem também cria para espaços fora de teatros e fica questionando o quanto conseguimos controlar ou não todas as variáveis do momento e o quanto precisaríamos deixar espaço para a improvisação e adaptação quando não estamos numa caixa cênica. Coração encharcado  ocorre num estacionamento, mas a obra delimitou um espaço para acontecer, criou-se um "palco italiano", uma vista frontal, apesar dos momentos em que uma bailarina apareceu no telhado ou um carro surgiu buzinando na entrada do estacionamento trazendo o famoso Jacaré do Menino Deus, quase um popstar da enchente em Porto Alegre.

Enfim, vi e ouvi muita gente que sentiu diferente ao assistir esse trabalho da Cia Municipal de Porto Alegre. Pessoas que ficaram impactadas, emocionadas, mas eu de fato não consegui estabelecer uma conexão desse tipo com a obra. Fiquei pensando sobre muitas outras coisas que acredito não serem as propostas artísticas dos criadores deste trabalho. Espero rever Coração Encharcado e ainda assim... em outras condições para estabelecer outras conexões com a obra.


Ficha técnica de Coração encharcado e ainda assim...:

Direção: Airton Tomazzoni e Carlota Albuquerque
Assistência de direção: Neca Machado
Intérpretes/criadores: Andressa Pereira, Caleo Alencar, Driko Oliveira, Iago Poerch, Isadora Franco, Leonardo Maia, Leonardo Silva, Marina Sachet, Paola Baldissera, Paula Finn, Pedro Coelho
Cenografia: Rodrigo Shalako
Trilha sonora: Driko Oliveira
Figurinos: Gustavo Dienstmann
Iluminação: Guto Greca
Fotos: Tom Peres
Produção: Carol Martins, Carla Souza e Ilza do Canto

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