domingo, 16 de novembro de 2014

IMPRESSÕES SOBRE CONSONANTES

Estou para escrever sobre o espetáculo Consonantes da Cia de Flamenco Del Puerto desde que o vi pela primeira vez (acho que foi lá em junho deste ano). Na verdade, estou em dívida com algumas pessoas para as quais falei que ia escrever sobre o assunto. Vi mais duas temporadas do trabalho depois disto e só agora consegui tempo para escrever algo sobre o que vi e ouvi. O chato é que já ouvi e li várias pessoas falarem sobre ele. Tentarei, contudo, manter-me fiel às minhas impressões.

Quero começar falando o que considero mais importante nesta nova proposta da Del Puerto, que é bem diferente do último espetáculo do grupo, chamado Las Cuatro Esquinas. Consonantes é um espetáculo de flamenco, pois todos os artistas envolvidos neste projeto são especializados nesta área por assim dizer. Já coloco no bolo até o Leonardo Dias, que veio do sapateado americano, mas que já foi infectado com o vírus flamenco há alguns anos e vem evoluindo muito nesta nova, para ele, maneira de expressão artística. Acho importante salientar, pois o espetáculo tem sim uma proposta de cena mais relacionada com a contemporaneidade, mas as coreografias, as músicas, os artistas em cena, tudo é estruturado sob a estética e a estrutura musical do flamenco. O próprio "mote" do espetáculo é muito flamenco, já que fala desta construção conjunta que acontece quando músicos e bailarinos se reúnem para fazer arte. O flamenco é comunitário, digamos, pois um elemento precisa do outro para completar-se. O baile, a guitarra, o cante, as palmas, cada um deles é peça fundamental no quebra-cabeças flamenco. Quando um destes falta, a ausência é sentida por todas as outras peças. E isto fica muito claro em cena quando os artistas vão entrando aos poucos no palco até completar a cena. A única coisa que acho que não tem muita relação com o flamenco é o argumento dos fractais, pois entendo que, em se tratando de flamenco, não são peças iguais que se repetem e criam um todo, mas peças absolutamente diferentes e singulares que se unem para fazer um todo coeso.

Voltando a falar sobre a "estrutura" flamenca, é muito bom, sendo eu também uma artista que estuda e trabalha com flamenco, ver algumas "regras" flamencas sendo quebradas em cena. Nisto, a meu ver, a Cia de Flamenco Del Puerto mostra que está acompanhando a produção flamenca feita por algumas grandes companhias. Para quem quer ver mais, basta procurar por nomes como Eva Yerbabuena, Israel Galván e Rocío Molina e notar que tipo de construção cênica contaminou os flamencos nos espetáculos pensados para palcos de teatros, pois esta atmosfera é bem diferente dos bailes em tablaos, cuevas, bares e ruas. Voltando a Porto Alegre, é muito interessante ver os músicos andando e compondo a cena longe da forma tradicional do flamenco que os deixa sentados lá no fundo do palco sem sair do lugar. Em Consonantes, eles ganham liberdade de movimentação por todo palco, entrando e saindo de cena, ficando de costas para o público, dançando, movendo as muitas cadeiras que formam o cenário, compondo e descompondo a cena, enfim, modificando a estrutura. Neste ponto específico, gosto de salientar uma das cenas mais lindas do espetáculo, sob meu ponto de vista, que é o momento em que o guitarrista caminha entre as cadeiras em silêncio como que procurando o lugar ideal para voltar a tocar. É uma cena muito bonita e muito surpreendente para mim, particularmente, pois jamais pensei em ver o Giovani Capeletti, que para quem não sabe é meu noivo e um tímido de carteirinha, "atuando". Fiquei muito orgulhosa de vê-lo conferir à cena o peso dramático que ela pede.

Sob este aspecto, tenho que citar que toda esta inovação conceitual é possível graças à direção de Denis Gosch. Um espetáculo que deseja quebrar a estrutura de cena tradicional precisa ter um olhar "de fora" sobre aquilo que está acontecendo no palco. O Denis, embora não conheça profundamente os códigos da música e da dança flamenca, fez um excelente trabalho ajudando a Cia de Flamenco Del Puerto a compor as transições entre uma cena e outra. O espetáculo tornou-se assim, não uma sucessão de números musicais e dançantes, mas um espetáculo totalmente unificado que, para mim, só dá lugar ao aplauso quando chega na cena final. Trazer um diretor para olhar para o seu trabalho e unificar as cenas mostra que a Cia de Flamenco Del Puerto atingiu a maturidade necessária para colocar suas propostas mais arrojadas em cena de forma clara e coesa. E por falar em direção e composição de cenas, preciso citar a iluminação primorosa de Leandro Gass, que ajuda a compor e modificar todo o clima do espetáculo. Uma das coisas que acho mais interessante, é ver a cena escura num baile que, flamencamente falando, é catalogado como alegre, que são as cantiñas que abrem o espetáculo, e ver a cena muito iluminada num "ritmo" mais tenso como a liviana/cabal que encerra Consonantes. Normalmente, veríamos o contrário, e esta contradição na luz e até no figurino causam um estranhamento gostoso de sentir.

Por falar de figurino, gosto de quase tudo. As roupas das cantiñas, soleá por bulerias e farruca são realmente muito bonitas, flamencas e contemporâneas ao mesmo tempo. Os figurinos do último número, contudo, não conseguiram provocar em mim a mesma sensação. Acho que não entendi totalmente a proposta de construção dos figurinos dos dois bailarinos. Embora tenha gostado do vestido curto com calça por baixo e tenha entendido a necessidade cênica desta roupa, não posso dizer o mesmo do figurino do bailarino. Simplesmente acho que aqueles madronhos brancos sobre o fundo preto me remetem para um lugar muito distante do flamenco que não tem muito a ver com as outras propostas colocadas em cena. Mas também não chega a comprometer a cena ou coisa assim. As roupas deste último número realmente não foram bem captadas pelo meu olhar. Aliás, acho que o figurino dos músicos também poderia ter ganhado um olhar especial, porém, não chego a ficar incomodada de ver que foram eles mesmos que escolheram suas roupas, ou seja, não tem um figurino específico para cada um deles. Os músicos estão com sua habitual roupa preta e ponto.

Por falar em músicos, tenho que destacar a participação dos cantaores Diego Zarcón e Fernando de Marília. Ver Consonantes com um ou com o outro é ver dois espetáculos diferentes. O Diego Zarcón tem a seu favor um excelente compás (ritmo por assim dizer) para o cante quando se trata de cantar para alguém dançar. É incrível como todas as letras combinam com os remates e chamadas e como tudo fica totalmente bem enquadrado e com a dinâmica certa. Ele realmente prova que conhece muitos palos do flamenco, suas melodias, estruturas e possibilidade de letras e variações. Por outro lado, Fernando de Marília tem uma energia cênica muito interessante para o clima criado em Consonantes, já que ele consegue ser mais reflexivo e até mesmo austero em cena, além de ter um timbre de voz muito bonito. Enfim, cada pessoa contribui com o que tem de melhor e torna o espetáculo diferente. E acho que é disso mesmo que se trata: não é ser melhor ou pior, é ser diferente.

E por falar em diferente, Gabriel Matias conseguiu me surpreender positivamente. O solo dele foi simplesmente arrebatador da primeira vez em que eu vi. Como eu o conheço desde os 12 anos mais ou menos, levei um choque ao vê-lo totalmente maduro e à vontade em cena. Foi emocionante, mas continuo sem entender o porquê daquela venda no meio do solo. Enfim, é uma pena que a soleá por bulerias, ou até mesmo o espetáculo inteiro, já não tenha a mesma energia em cena demonstrada naquela pré-estréia no Teatro Renascença. Creio que é normal que o espetáculo mude ao longo do tempo, porém não pode-se deixar que ele perca momentos e dinâmicas interessantes. Acho que seria um conselho meu aos intérpretes de Consonantes: busquem aquele primeiro dia. Busquem aquelas sensações, aqueles desejos e coloquem tudo aquilo no palco de novo. Sei que não é fácil manter um certo tipo de clima e energia, mas este espetáculo precisa deste tipo de exercício por parte dos artistas envolvidos nele. E por falar em clima, a projeção do início é muito longa. Não precisa ter foto de todos os integrantes do espetáculo projetada em cena com um adjetivo identificando cada um. Somente os conceitos de consonar e de fractais já são suficientes para que o público capte o teor do espetáculo, afinal de contas, estas fotos e palavras já estão no programa web de Consonantes que o público pode acessar em casa sem quebrar a atmosfera austera da cena de início.

Para finalizar, quero expressar minha profunda tristeza em ver quantos problemas técnicos impedem e atrapalham a melhor execução e apresentação de Consonantes. É uma pena que a Cia de Flamenco Del Puerto não possua o equipamento (microfones, captadores, mesas de som, caixas de retorno e etc) necessário para uma proposta como esta. Microfonias, microfones que desgrudam do sapato em meio ao baile, volume baixo da guitarra ou alto demais nos pés/palmas realmente atrapalham a perfeita fruição de um espetáculo de flamenco. Flamenco é uma expressão musical e quem trabalha com flamenco sabe disso. A coreografia, a luz, a movimentação em cena, os silêncios, a mudança de cenário, tudo tem a ver com a música que desejamos fazer naquele determinado momento. Um espetáculo de flamenco precisa, portanto, ser tratado como um espetáculo de música. O som precisa ter tratamento especial. O problema maior é que todo este equipamento custa muito dinheiro e não é qualquer grupo, principalmente, porque a cia em questão não conta com patrocinadores, que consegue manter e construir um patrimônio como este.  Por outro lado, não é possível que o teatro esteja com quatro das sete caixas de retorno queimadas e não avise sobre esta situação para o grupo. Os artistas de flamenco precisam se ouvir. Se um não escuta o outro é impossível compor o todo, fica simplesmente impossível consonar. É realmente uma pena não ouvir direito a flauta tão bem tocada do Leonardo Dias e a guitarra flamenca de raiz do Giovani Capeletti. As composições musicais de Consonantes são muito bonitas. Gosto principalmente das falsetas das cantiñas, da farruca como um todo e da falseta do cabal que gruda na cabeça e fica lá por uma semana mais ou menos.

Enfim, de maneira geral, acho que Consonantes tem muito mais prós do que contras. É uma proposta bem interessante e todos os artistas envolvidos o executam de forma limpa. Dá para ver todo o trabalho técnico, todas as horas de estudo, todos os ensaios. Dá para ver que foram muitas horas de suor, de construção, de trocas, de tentativas, erros e acertos. Percebe-se que foram feitas muitas escolhas e que o trabalho tem possibilidade de crescimento e renovação. Espero, sinceramente, que a Cia de Flamenco Del Puerto consiga resolver os problemas técnicos de Consonantes e que o espetáculo volte à cena em breve.

Nenhum comentário:

Postar um comentário