sexta-feira, 9 de agosto de 2013

ENTENDER OU NÃO ENTENDER A ARTE, EIS A QUESTÃO

Num dia desses numa mesa de bar com meus colegas artistas, entrei numa discussão enorme sobre a necessidade ou não de “entender” as manifestações artísticas. Como não consegui ser absolutamente compreendida na ocasião, resolvi escrever sobre o assunto, pois acredito que o tema seja interessante.

Para gostar ou não de uma obra artística, creio não ser realmente necessário compreendê-la racionalmente. Muito da comunicação da arte com o público se dá no campo do sentir, da emoção, das sensações e não vejo nada de errado nisto. Aliás, acho interessante deixar a razão de lado de vez em quando e experimentar outras formas de fruição e “obtenção” de conhecimento. É limitador conhecermos o mundo somente através das lentes da racionalidade. Acredito que as sensações e emoções também ensinam muito e este conhecimento obtido por meio do corpo físico é tão importante quanto o que construímos mediante o aprendizado por meio da mente (que também faz parte do corpo), mas defendo que até para nos emocionarmos com uma obra é preciso que consigamos estabelecer uma relação com ela.

O que defendo é que, a partir do momento que entramos em contato com os “códigos” das diferentes manifestações artísticas, conseguimos extrapolar o “gosto ou não gosto” e ampliar a relação com uma determinada obra de arte. Vou citar o exemplo do flamenco. Quando comecei a dançar flamenco, eu achava que o flamenco era apenas uma dança espanhola, não tinha noção da real ligação que a dança flamenca tem com a música e nem da cultura toda que esta manifestação envolve. Por esta razão, eu ouvia os cantes jondos do flamenco (aqueles cantes tristes que lembram lamentos) e achava chato. Eu não compreendia o que estava ouvindo e, por isso, não gostava, não escutava, não me comunicava com aquilo.

À medida que fui conhecendo a cultura flamenca, que entrei em contato com a origem desta manifestação, que compreendi o idioma (espanhol), que compreendi os ritmos, as melodias, que conheci a inspiração de cada palo flamenco (podemos chamar de ritmos), enfim, à medida que decifrei o código consegui apreciar este tipo de cante que, aliás, dizem ser a origem de toda a arte flamenca. Eu transcendi a barreira do gosto ou não gosto, porque o que eu ouvia passou a ter um novo sentido para mim. Hoje em dia, este tipo de canto cheio de lamentos e dor é o que mais me “atrai” no universo flamenco. Digo sempre que não tem nada mais bonito do que uma soleá flamenca.  É bonito, me toca, me emociona, mas tudo só foi possível depois que eu compreendi o flamenco, seu código, sua estrutura, seu tema, sua forma de pensar, de compor, de dançar, de viver.

É este o meu problema com o jazz, por exemplo. Não vim da música e sei muito pouco sobre este assunto. Já me explicaram que num show de jazz, os músicos vão improvisando um a um sobre um tema comum a todos e acredito que isto deve ser muito complexo e que exige muito conhecimento e técnica para ser bem executado, mas este é o tipo de expressão artística com a qual não consigo dialogar. Meu diálogo com o jazz termina no “nossa, que legal isto” e não gera uma reflexão maior ou uma mudança significativa na minha forma de ver aquilo tudo. Defendo que o que falta para um diálogo maior entre eu e o jazz (falando somente da parte musical do mesmo) é entrar em contato real com o código por trás daquilo que vejo e escuto. Se eu entendesse de harmonia, escalas, tons e etc, teria mais ferramentas para elaborar a quantidade enorme de coisas que acontecem durante um show de jazz e talvez conseguisse elaborar novas reflexões a partir do que ouvi. Sinto-me muito ignorante quando ouço dos músicos comentando sobre um show de jazz ao qual também assisti. É intrigante ver como aquilo consegue ser tão impactante para eles e tão distante para mim.

É como na leitura, é preciso ser alfabetizado para poder ler e interpretar. Sem conhecer o código, neste caso, as letras e as palavras, não há uma real comunicação ou uma troca de informações mais profunda. O que acontece fica restrito ao pequeno campo do gosto pessoal ou do “ai, que bonito isso” (as pessoas podem achar bonitas as formas que as palavras criam no papel). Campo este que deve ser o início da relação entre as manifestações artísticas e o público, mas que precisa ser ampliado para que a arte atinja outros de seus objetivos que não o simples entretenimento. A arte propõe novas formas de pensar, de agir, de ver o mundo, porém nem sempre o público consegue perceber tudo isto, já que não tem contato com os códigos que permitem esta leitura mais ampla da obra de arte com a qual está se relacionando ou tentando se relacionar.

Não sei se fui clara, mas defendo uma democratização dos “códigos” e estruturas que são usados para que uma obra passe do campo da inspiração para o campo do real. Conhecendo o "alfabeto artístico", o público pode ter uma real fruição da arte. Acho que a arte também possui um papel didático que muitas vezes é negligenciado e que acaba afastando as pessoas de manifestações artísticas que elas não conhecem. Não defendo que os artistas tenham que ficar explicando suas obras, mas que precisamos sim propor e disponibilizar ferramentas para ampliar o diálogo do público com a arte sempre que tivermos oportunidade para isto. Ou ainda, podemos criar estas oportunidades cada um da maneira que julgar mais interessante para cada público ou para cada obra. Enfim, sigo pensando sobre tudo isso e desejando que mais e mais pessoas consigam construir uma comunicação mais consistente com a arte e os artistas. Afinal de contas, a arte perde sua função se não houver público para ela.

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