Depois de assistir alguns espetáculos de dança neste fim de
ano e de ver a premiação do Açorianos de Dança fiz algumas reflexões. Não se
trata de uma crítica detalhada de cada espetáculo, mas conclusões que surgiram
a partir do panorama geral das produções que pude acompanhar e dos processos
nos quais estive envolvida de alguma forma seja como público, como intérprete
ou como professora.
Tem muita coisa elogiável, mas também muita coisa a
lamentar. Vou começar lamentando a falta de equipamentos nos teatros de Porto
Alegre. É inadmissível que teatros caros, que cobram aluguel, não tenham cabos
em perfeitas condições de uso ou que não abram suas portas para a crescente
produção local. É triste, para dizer o mínimo, que os teatros municipais
estejam sucateados, que não possuam monitores de retorno, microfones,
equipamentos de iluminação, mesas de som e outros equipamentos técnicos
necessários para que os artistas possam executar suas ideias da melhor forma
possível. O que adianta o artista idealizar uma projeção no fundo do palco se o
ciclorama está cheio de remendos e não fica esticado nunca? O que adianta o
iluminador projetar uma luz “X” se ele só consegue executar uma “Y” por causa
da falta de refletores ou canais na mesa? Isso sem falar em buracos no palco,
cortinas que não funcionam e cupins que fazem parte do cenário porque não tem
como evitar que eles entrem em cena.
Aliado a isto, surgem os problemas de formação e manutenção
dos artistas. Conheço companhia de dança que figurou dois anos seguidos no Açorianos
com espetáculos indicados na categoria Melhor Espetáculo que não tem lugar fixo
para ensaiar. Estão sempre correndo atrás de salas para alugar. Os espaços
disponíveis são sempre salas multiuso que ás vezes recebem exposições de artes
plásticas que impedem ensaios ou salas públicas que privilegiam uma ou outra
pessoa, pois estes fizeram investimentos no local como colocação de espelhos ou
linóleos. Isto sem contar os locais mal administrados que fecham sem prévio aviso,
salas com piso inadequado para a dança e outras coisas assim. Neste ponto, fico
feliz em saber que existem grupos que possuem suas sedes próprias conquistadas
com muito esforço e nas quais conseguem levar em frente seus trabalhos mesmo
que tenham que dividir o espaço dos ensaios com aulas.
Aí surge outro ponto da minha reflexão de fim de ano, como é
difícil ter que dividir o tempo entre ensaiar, produzir e dar aulas. Sempre
achei que seria bailarina até não poder mais dançar e só depois começaria a dar
aulas, mas a realidade não é esta. Quem quer viver de arte é obrigado a dar
aula, a ter outro emprego, a fazer produção, fotografar, fazer roupas, criar
cenários... Como não tem outro jeito, o importante é contar com a generosidade
dos alunos e dos patrões e dividir o tempo de trabalho com temporadas, ensaios
e viagens. Infelizmente, não sobra muito tempo para fazer aula o que resulta na
falta de aprimoramento técnico que vemos em muitos artistas que estão na cena
por aí. Os que dão aulas relacionadas às técnicas que estudam e trabalham podem
utilizar-se das aulas dos alunos para alguns benefícios próprios, mas o que
dizer daqueles que tem empregos em outras áreas? Lamento muito quando vejo boas
propostas cênicas “amarradas” por falta de aprimoramento técnico e conhecimento
dos artistas que estão no palco. Sei das dificuldades, também passo por elas. É
frustrante ter uma ideia e não conseguir executá-la por falta de técnica
corporal ou por limitações de movimento ou de pensamento. E não estou falando
aqui de espetáculos de alunos. Cobro bom nível técnico de bailarinos
profissionais. Sei, contudo, que muitas vezes não temos o tempo que gostaríamos
e nem o dinheiro que gostaríamos para fazer todas as aulas que nos tornariam
estes bailarinos dos quais estou falando. Bailarinos capazes de, utilizando-se
da técnica e da emoção, emocionar, comunicar e propor reflexões.
Mesmo assim, creio que não se pode deixar de buscar o
aprimoramento técnico. Qualidades técnicas e artísticas tem que estar em
equilíbrio na cena. Para dar um exemplo do flamenco, é muito ruim ver um baile
em que o bailarino erra o som ou o tempo musical de todos os “remates”
(comentários sonoros feitos, em geral, com o sapateado) durante uma letra
cantada pelo cantaor (cantor flamenco). Isto estraga a música do baile! Quem
conhece flamenco sabe que música e baile estão intimamente ligados nesta
manifestação artística e que a sonoridade de tudo que se faz com pés e corpo
interfere no resultado musical da cena. Quando a música da cena não é bem
executada, o trabalho perde a magia. A falta de técnica dos artistas, sejam
eles cantores, músicos, bailarinos ou atores, acaba atrapalhando a qualidade
artística da cena e arruinando o resultado final do trabalho. Penso tanto nisto
tudo que chego a ficar meio revoltada com as condições de trabalho que os
artistas encontram por aí. A maioria de nós consegue levar à cena trabalhos
interessantes graças ao investimento próprio de energia, dinheiro e tempo. É um
trabalho do qual gostamos, mas que poderia ser facilitado se tivéssemos locais
para ensaiar, tempo e dinheiro para fazer aulas, salas bem equipadas onde
apresentar nossas produções e temporadas maiores que possibilitassem mais
espaço na mídia e na agenda do público.
Falei da necessidade que sinto de ver artistas bons
tecnicamente, mas falta ressaltar a importância de intérpretes que sejam
interessantes em cena. Do que adianta ver artistas com excelente técnica se
eles não comunicam nada, se mais parecem um picolé de chuchu ambulante? Não dá
para subir num palco somente baseado na limpeza dos movimentos, na clareza dos
sons que tiramos dos instrumentos, na elasticidade acima da média, na voz limpa
e clara com um alcance formidável... Enfim, boa técnica é fundamental, diria
que é básico, mas o artista tem que ser mais do que isso. É tão mais
interessante quando vemos pessoas em cena que transmitem alguma coisa. Não que
o público precise entender tudo o que estar acontecendo no palco, mas acho que
é fundamental tocar de alguma forma aqueles que estão na plateia. Emocionar,
chocar, fazer pensar, tirar do lugar comum, incomodar, surpreender... o artista
precisa querer mais do que simplesmente executar passos, notas e marcações
cênicas sem falhas técnicas.
Pensando nisto, me deparo com pessoas cenicamente egoístas que
afirmam pensar somente em si mesmos enquanto dançam, tocam, cantam, iluminam. Não
consigo chamar de artistas pessoas que não respeitam os colegas de cena, que
não interagem ou se comunicam com o público ou ainda que tem a certeza da
verdade absoluta. Sobre a troca com o público, não estou defendendo aqui o
mercantilismo artístico. Acho igualmente desinteressantes trabalhos que lidam
com o “fácil”, com o “digerível” que dão ao público aquilo que este está
acostumado a ver. Isto pode ser um ponto de partida para conquistar plateias
que ainda não estão acostumadas à arte, mas o artista não pode ficar limitado
ao lugar comum. Creio que na gênese de cada artista está a transgressão. Os
artistas são como as crianças quando fazem “arte”, transgridem os limites
impostos pelo meio. Aliás, o artista é, a meu ver, aquele ser incansável que
também busca sempre transgredir seus próprios limites tanto corporais como de
pensamento. Como criar ou nos inspirar se não prestarmos atenção ao que nos
cerca e aos outros seres que nos rodeiam e contaminam, que nos mostram novos
caminhos, novas formas de pensar, de agir, de ver o mundo? Ou ainda como ser
artista se pensarmos somente em ganhar dinheiro ou aparecer no jornal? Ter o reconhecimento artístico e financeiro
digno pelo trabalho realizado é justo, mas trabalhar com arte apenas para
ganhar dinheiro é lamentável e até um pouco estúpido.
Enfim, defendo que os artistas sejam inteiros no seu fazer
artístico, tão inteiros quanto puderem ser dadas as condições de trabalho e
formação que tem a seu dispor. O que importa é não se acomodar, buscar sempre
mais, melhorar sempre, modificar-se sempre, transgredir continuamente os
próprios limites. Meu desejo para o futuro é que nós, artistas, sejamos
inteiros, intensos e verdadeiros para que estes qualificativos estejam
presentes também em nossas propostas levadas a cena, nosso fazer artístico,
nossas criações e inspirações.
Graziela querida,estás encarando a nossa realidade com muita propriedade.E, posso te afirmar que foi pior!Mas, como sou otimista,penso sempre podemos melhorar este panorama.Precisamos nos posicionar e cobrar mais das pessoas responsáveis por estes locais.Admiro eventos como o Porto Alegre em Cena,inimaginável décadas atrás.Então, também podemos fazer alguma coisa melhor pela dança.És uma moça, muito bem preparada para a vida .Sei que vais vencer! Abs
ResponderExcluirPois é, é preciso seguir acreditando e trabalhando para que as coisas mudem e a realidade se transforme. Obrigada pelo carinho, Mara. Bjs
ExcluirGrazi muito bom teu texto, eu que não sou do meio artístico entendi teu ponto de vista muito bem. Parabéns pelo blog. Beijos Ale.
ResponderExcluirQue saudade de ti, guria! E que bom ler tua opinião sobre o que eu escrevi. Bjs
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